sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O Sertão na Arte de Ana das Carrancas


Esta semana, na 6ª série, adentramos pelos labirintos dos Sertões e começamos a desenrolar os “fios” de Ariadne: inicialmente, com as imagens do Sertão na Arte de Ana das Carrancas.

Ana Leopoldina Santos Lima era o nome dela. Isso muito antes de o barro moldar seu destino lhe dando por amor um homem que não tinha olhos para enxergá-la. Os monstros gerados pelas mãos de Ana eram cegos como o companheiro de sua vida. Com um golpe rápido, certeiro, ela vazava os olhos de suas criaturas com a ponta de um pedaço de pau. Com Ana era assim, a desgraça virava épico[...] Carregava nos gestos uma largura de alma. E o rio era seu espelho em mais de um sentido. A mulher que moldava o barro do chão só pisava o reflexo do céu [...] Ana das Carrancas costumava dizer que sua arte era a síntese de seu amor por um cego que via o mundo, mas não era visto por ele. Entre ela e Zé dos Barros nunca se soube quem era criador, quem era criatura. Ela já veio ao mundo retirante, na cidade pernambucana de Ouricuri. Mas diferente de quase todos, nunca lamentou a terra estéril sob seus pés. A estirpe de mulheres da qual era continuidade moldava pratos, panelas, vasos. Ana aprendeu com a mãe, e antes dela a avó, que do barro se arranca tudo, até a vida.[...]Um dia a vizinha abordou Ana na rua. “Desenteirei açúcar do meu filho para dar esmola a Zé”, queixou-se. O rosto de Ana queimou de vergonha. Tirou uma nota do bolso e retrucou: “Enteire de novo o açúcar do seu filho. Por Zé ele não vai passar fome”. Naquela noite não dormiu. Sua tristeza não coube na rede que dividia com Zé. Quando acordou, chamou o marido e anunciou: “Meu velho, nunca lhe fiz um pedido. Mas hoje lhe peço. De agora em diante, você não vai mais pedir esmola". Assustado, Zé rebateu: “Deus me fez sem vista para que eu pedisse esmola”. Ana fincou pé: “De hoje em diante sua vista é a minha. Você pisa o barro, eu faço a peça. Nós vamos levar para a feira, nós vamos ser felizes”[...] Ana pegou a enxada e caminhou até as margens do São Francisco, em Petrolina. Diante da fartura de líquidos, invocou o espírito do rio: “Meu grande Nosso Senhor São Francisco. Pelo poder que ostenta, pelas águas que estão correndo, do próprio barro melhore a nossa vida”. Ao terminar, juntou um bolo de lama e fez, sem que até hoje saiba como, a primeira carranca.[...] A maioria dos carranqueiros célebres esculpe em madeira, Ana, em barro. Mas a maior singularidade são mesmo os olhos vazados[...] “Os olhos vazados da carranca são uma homenagem a ele. O Zé pisa o barro, prepara o bolo, faz a forma no pensamento. Eu moldo” [...]
(Trechos do texto de Eliane Brum, Revista Época 09/10/2008)

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